Tabula Rasa

Março 22 2009

O contributo de Ana Sã

 

o ciclo do olhar 1

 

no vidro embaciado
plano de condensação
escorrem os ramais
da astrologia imediata

concentra-se calor
num cântico de palavras comprimidas
silêncio e tempo seguem em diante
com o rigor de engenharia mecânica:

o poema nasceu neste instante.

 

 

Ana Sã, 2003

 

publicado por Cristina às 22:54

Março 22 2009

O contributo de E.

 

Poema do alegre desespero

 

Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

Compreende-se.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,

e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio,
e os poemas de António Gedeão.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?

 

António Gedeão.

publicado por Cristina às 22:42

Março 22 2009

 

 

O contributo de V.O.J.

 

 

por sobre o teu corpo
corre um rio translúcido
e há uma canção muito alta
a querer trespassar o nevoeiro


por dentro do teu corpo azul
passa um rio interminável
e uma garganta tenta acender um som

ténue como uma lâmpada

 

por debaixo da tua língua

passa toda a minha biografia
em busca da casa alta, a que fica
junto ao rio, dentro do corpo

por sob a casa passa o rio
de nós juntos, o que une a cabeça
aos pés do casal deitado.
e o mármore místico das figuras.

 

dentro da boca entreaberta
fios de som azul tentam unir-se
numa canção que chame o nevoeiro
que faça correr a água

que faça correr a casa
e os sifões de rios que sob ela passam
noite e dia, do passado para o futuro
e de cima para baixo, em queda ou voo

 

bebemos pela mesma garganta
essa água azul, esse sangue interminável
que nos atravessa o corpo, a casa,
e queremos encontrar o chão onde unirmos

o grito ao nevoeiro
o espasmo ao espanto
as cores, as luzes, as geografias.

as tuas peúgas ficaram caídas
sobre o livro meio aberto

entre paredes de cal, no chão,
procuramos o local mais propício


enquanto um silvo tenta erguer-se
noutra época

entre os candeeiros acordados,
ou um som de comboio aéreo
atravessa o meio da noite;

e sob os seus rails passa um rio;
e sob o seu rio está a casa;
e sob a casa estamos os dois inumados.

mas passa o nevoeiro, sempre,
sobre a nossa confusão.

V.O.J. (Março 2009)

publicado por Cristina às 07:41

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